Inova Docente
Inova Docente
Você procura por
  • em Publicações
  • em Grupos
  • em Usuários
VOLTAR

Minuto Ciência: A história por trás da cloroquina

Minuto Ciência: A história por trás da cloroquina
Roberta Yamaguchi
abr. 10 - 6 min de leitura
000

Muito tem sido falado sobre o uso da cloroquina ou hidroxicloroquina como alternativa terapêutica para a COVID-19. Nós do Inova Docente lidamos com essas perguntas em aula e sabemos que você, professor, também deve ouvi-las. Por isso, decidimos trazer algumas informações que vão ajudá-lo nas respostas. Vamos lá?

A cloroquina e a hidroxicloroquina pertencem a um grupo de fármacos chamado 4-aminoquinolinas, cuja estrutura core (central) está representada pelo círculo vermelho (Figura 1). A hidroxicloroquina se diferencia da cloroquina pela presença de um radical hidroxila ao final da cadeia (círculo azul na Figura 1). A cloroquina foi aprovada para tratamento de malária pelo FDA em 1949 e a hidroxicloroquina em 1955.

Figura 1. Estruturas moleculares de cloroquina e hidroxiloroquina. Em vermelho, destaque para o core. Em azul, radical hidroxila.


Mas, qual a relação entre a cloroquina ou hidroxicloroquina com a COVID-19? Esses fármacos são conhecidos por inibir a atividade lisossomal e a autofagia. Nesse processo finamente regulado, partes do citoplasma ou de organelas são sequestrados por vesículas de dupla membrana (autofagossomos) e digeridas por enzimas lisossomais. A entrada de vírus envelopados nas células é conhecida por ocorrer em função de duas vias primárias: alguns vírus entregam seus genomas ao citosol depois que seus envelopes se fundem com a membrana plasmática na superfície da célula, enquanto outros tiram proveito da maquinaria endocítica da célula. No último mecanismo, os vírions endocitados são submetidos a uma etapa de ativação no endossomo, que é tipicamente mediada pela acidificação do pH local, resultando na fusão das membranas viral e endossômica e liberação do genoma viral no citosol (Figura 2).

Figura 2. Cloroquina/Hidroxicloroquina e SARS-CoV-2. Lado esquerdo: Mecanismo de ação proposto para a cloroquina/hidroxicloroquina sobre SARS-CoV-2. Lado direito: Resultados do ensaio clínico mostrando que a hidroxicloroquina não reduz a mortalidade decorrente da infecção por SARS-CoV-2.

Uma das vias de entrada do SARS-CoV-2 se dá pela ligação da proteína viral Spike com o receptor ACE2 (Angiotensin converting enzyme type 2), seguida pela endocitose do vírus. Após a endocitose, o vírus é englobado por uma vesícula de dupla membrana e posteriormente se funde ao lisossomo. Com a acidificação do fagolisossomo  e ativação das hidrolases ácidas lisossomais, o RNA viral é liberado no citosol. A cloroquina/hidroxicloroquina promove aumento do pH das vesículas endocíticas, o que supostamente dificultaria a digestão das proteínas virais e consequente exteriorização do genoma viral para o citoplasma. Embora esse mecanismo ainda não tenha sido comprovado para o vírus SARS-CoV-2, essa foi uma das hipóteses que levaram os cientistas a acreditarem no possível potencial terapêutico da cloroquina. Até mesmo o FDA chegou a liberar o uso emergencial desse fármaco no início da pandemia, mas essa liberação foi revogada em junho de 2020. Além disso, existem outras vias de entrada do vírus que não dependem de endocitose, por isso, a cloroquina sozinha não seria capaz de impedir a infecção viral. 

O primeiro ensaio clínico relacionando a hidroxicloroquina à COVID-19 ocorreu na França e foi publicado em 17 de março de 2020 na revista International Journal of Antimicrobial Agents. O artigo mostrou dados de um pequeno ensaio clínico com 36 pacientes, 20 desses tratados com hidroxicloroquina e 16 que não receberam o fármaco. Do grupo tratado com hidroxicloroquina, 5 pacientes receberam azitromicina. O estudo mostrou redução da carga viral nos grupos tratados com cloroquina, efeito potencializado pela azitromicina. No entanto, existem muitas falhas nesse estudo: (1) o n amostral é muito baixo; (2) o estudo avaliou apenas a carga viral dos pacientes; (3) o estudo não é controlado e nem randomizado, aliás o grupo controle foi formado por pacientes que se recusaram a receber a medicação; (4) existência de pacientes assintomáticos nos grupos. Os próprios autores afirmam que o estudo era muito preliminar e que maiores estudos deveriam ser realizados para verificar se a cloroquina era realmente eficiente.

Diversos outros estudos posteriores mostraram que a hidroxicloroquina sozinha ou em associação com azitromicina não tinha efeito sobre a infecção decorrente do SARS-CoV-2. Um estudo clínico com 132 pacientes, duplo-cego, randomizado e placebo-controlado foi terminado antecipadamente, pois não houve diferença na carga viral dos pacientes tratados com hidroxicloroquina em relação ao grupo controle. Um outro estudo publicado pelo grupo Recovery (Randomised Evaluation of COVID-19 therapy) também não mostrou redução da mortalidade no grupo tratado com a hidroxicloroquina. O grupo Recovery é formado por médicos e cientistas do Reino Unido que se uniram para realizarem grandes ensaios clínicos e testarem o possível reposicionamento de fármacos para tratamento da COVID-19. Nesse estudo, foram avaliados 1561 pacientes que receberam hidroxicloroquina e 3155 que receberam tratamento convencional. O estudo mostrou que dentre os pacientes tratados com hidroxicloroquina não houve redução da mortalidade em 28 dias. Um outro estudo publicado pelo WHO Solidarity Trial Consortium, envolveu 405 hospitais em 30 países. Nesse estudo foram testados diversos fármacos incluindo a hidroxicloroquina e a conclusão foi de que esse fármaco não apresentou benefícios para a COVID-19.

Portanto, diante de tantas evidências, verifica-se que a hidroxicloroquina não é um tratamento eficiente contra a COVID-19. Além disso, é muito perigoso usar esse medicamente como estratégia preventiva em virtude de seus efeitos colaterais, que vão desde sintomas mais leves (como dor de cabeça, náuseas e vômito) até efeitos mais sérios (como parada cardíaca, broncoespasmos e perda auditiva). 


Referências

Cavalcanti AB, et al. Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19. N Engl J Med. 2020. PMID: 32706953 Free PMC article. Clinical Trial.

Gautret P, Lagier JC, Honoré S, Hoang VT, Colson P, Raoult D. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open label non-randomized clinical trial revisited. Int J Antimicrob Agents. 2021 Jan;57(1):106243. doi: 10.1016/j.ijantimicag.2020.106243. PMID: 33408014; PMCID: PMC7779265.

RECOVERY Collaborative Group, et al.Effect of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with Covid-19. N Engl J Med. 2020. PMID: 33031652 Free PMC article. Clinical Trial.


Denunciar publicação
    000

    Indicados para você